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Channel: Les Petites Choses
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Dindi ou O Despertar de Uma Cidade.

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 O que não me saltava dos olhos, me assaltava os nervos. Fui feliz na temerosa ânsia de buscar o mistério guardado dentro da mente, parado naquele quarto ao som de qualquer musica que aos poucos inundava o ambiente com sons de guitarra progressivamente trabalhados eu quis viajar. E viajei! O convite na forma de pequeno papel colocado em baixo da língua tinha um gosto estranho, aos poucos minhas pupilas estariam dilatadas e minha percepção pronta para absorver qualquer impulso exterior e transformá-lo no mais interessante de todas as experiências. Aquele era um dia especial dentro do ano de Saturno.  Grupos de jovens saiam às ruas numa cantoria bonita de se ouvir, cores, bandeiras, cartazes multiplicavam-se na febril esperança do dia que amanheceria. Querendo ou não! Aos poucos a massa (mesmo que um tanto confusa e dispersa) caminhava mais firme, indo em direção à prefeitura da cidade, enchendo seus ares de desejos de mudança. Eu havia feito parte daquela multidão, e embora tivesse observado mais que qualquer coisa, me sentia feliz por ver aquela gente abrindo os olhos, notando a realidade cruel e lutando para modifica-la. Eu não sabia lutar, sempre fora fraco demais para isso, dentro de mim apenas a sede de mudar, a fúria de um oceano inteiro dentro do corpo magro e dos braços fracos de jovem sonhador.

 Lembro que a romaria tomou as ruas numa revolta concreta, grupos dividiam-se e inundavam o centro da cidade, pessoas entravam pelas grandes avenidas, tuneis, praças, ruas e becos numa manifestação misto de alegria e revolta. Aquele era o despertar de uma cidade. Bem assim, brotando do chão árido e sem grandes pretensões de uma sexta-feira. Em outro patamar de existência, sobrevivia cheio de arte e de sonhos, pairando sobre a vida com extrema sensibilidade, um garoto de olhos puxados, músculos firmes, alargadores na orelha e andar firme que ia gingando pelas ruas numa precisão embriagada. Libra, dual, estético, indeciso, diplomático. Se Vênus existisse ela seria um homem e teria traços orientais, bem como os aromas de lá, formas, cores e mil tons de existência. Androgenia!  Sem perceber, atraído por algum magnetismo estranho e oculto via a minha frente aqueles mesmos olhos puxados, chineses, infantis como os olhos de um bandido, também dilatados. Dentro deles uma serie de segredos diferentes, camaleônicos.

 Primeiro o gosto, a língua tentando fugir da boca. Depois o relaxamento. Um caleidoscópio de cores. Eu, metade víbora e metade felino tateando os moveis do quarto não conseguia perceber a complexidade daquela noite, talvez fosse essa a única forma de não deixar o silencio consumir todos os presentes, um gesto ensaiado, um dos tantos que eu tenho na minha coleção. Plástico eram os meus movimentos, cheios de segurança, diretos, mas dentro de mim uma confusão generalizada me saltava as veias forçando o peito a derramar lagrimas que eu nem sei se existiam. Por um momento fui amor da cabeça aos pés e ver dentro daquelas paredes azuis grandes amigos soube que a felicidade existe, e que nem sempre fica constantemente conosco, no entanto suas raras aparições valiam a onda de tristeza e tragédias que seguem resignadas pela orbita terrestre. O sorriso da felicidade era lindo, e ela soube sorrir para mim por alguma razão.

 Mesmo com todos os sentimentos chegou um tempo em que o quarto era pequeno demais para o real tamanho do que sentíamos. Eu num violento impulso resolvi sair e ganhar a noite que caia por trás das nossas vidas, lá fora, com sua infinidade de estrelas, umas no firmamento, outras em forma de gente. Outra vez me vi parado, perdido pela cidade que depois do inicial confronto mergulhava então numa paz quase anormal, cada paralelepípedo parecia observar meu caminhar, as casas, as arvores, cada canto e cada espaço parecia integrar uma outra realidade, muito mais bonita que a cotidiana. A noite revelava o mais belo de tudo, pontes e tuneis tornavam-se belíssimos aos meus olhos, e até mesmo as cores pareciam mais vivas. Quis estar dentro de uma obra de Van Gogh. Talvez estivéssemos mesmo. Caminhando pelas ruas eu estava acompanhado, mantinha a conversa viva, o peito fremindo numa extasiante alegria e soube então que o medo havia se dissipado. Redescobri alguns sentidos adormecidos e uma cidade submersa na escuridão da madrugada, caminhávamos por todos os cantos encontrando uma razão diferente para observarmos com redobrada atenção cada detalhe existente no nosso redor. Maravilhados e drogados, sem culpa e sem pecado de buscar no mais profundo de nós os mistérios que nos compunham.

 De repente um abraço. Senti meu corpo tremer, e me lembrei de uma frase de Vinicius: “A gente não faz amigos, reconhece-os.”. Eu estava pronto para isso, reconhecer. Sabia que andar ao lado do menino de olhos puxados era um risco, eu era um choque de realidade para todos que nos viam juntos, sobretudo para os que não me conheciam. Sabedoria!O acaso era o meu Deus. A ele eu devia os melhores momentos e as melhores pessoas que compunham a minha vida, meu infinito particular.

 Andamos por ai, sentindo o vento que me trazia boas sensações, lindas canções e a presença ideal para redescobrir uma cidade oculta, liberta dos ruídos, vícios e dores do cotidiano. A paz tinha aquele gosto acido. Levando os passos para direções improváveis, sentando em bancos vazios, andando por becos solitários e avenidas iluminadas, nada era real. Nossa vida nunca mais seria igual. Éramos filhos da vontade, despertávamos todos os dias novas formas de dizer, mesmo que na ânsia de botar palavras para fora, joga-las no chão, umas eram dispensadas em vão, outras certeiras acertavam o peito feito flecha e ao chegar no mais profundo do ser desabrochava feito flor na primavera. Era inverno, o primeiro dia da estação, um frio fora do normal passava por nós e não arrancava mais que alguns leves suspiros. Observando meu corpo nunca o notei daquela maneira, eu por um momento me senti lindo, leve e livre, distendendo meus músculos eu era parte do universo, metade divino e metade profano. Notava que minha pele de tão limpa resplandecia em meio ao caos da sobrevivência, e o que corria dentro das minhas veias eram enormes doses de desejo.

 Eu ali pairando no mundo. Dentro do céu vermelho que se estendia sobre nossas cabeças milhares de estrelas e mistérios apareciam ao longe, compondo o que nós achávamos verdadeiro, um céu vermelho feito de amor. Manchas apareciam na nossa epiderme, e ao meu lado outras palavras um tanto desconexas vindo da boca do menino de olhos puxados me tomavam de assalto, um choque cultural, desde a demonstração das caligrafias das pichações feitas em muros até os pensamentos secretos exibidos sem vergonha no momento da embriaguez. Fomos felizes por uma madrugada inteira.

 As luzes da cidade eram partes de nós. Cada gesto, olhar, toque ou som parecia partir ao meio a realidade imediata dando outra noção dos fatos, vivíamos numa fantasia construída pelo onírico, paralela e desprendida. Tínhamos então pupilas e corações dilatados prontos para viver a vida que pulsava num frenesi extremamente agradável. Dos mistérios daquela noite o que sobrou nas nossas visões foi à promessa do futuro e os primeiros raios de sol. Soubemos seguir de volta para casa com a certeza de um pacto feito naquela primeira madrugada de inverno, apesar do frio, me sentia aquecido e em segurança, perambulando sem direção acompanhado dos meus sonhos e medos, e de um estranho menino de olhos puxados que entrara na minha vida sem pedir licença. 


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